nome completo: Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho.
Profissão: humorista, ator, comentarista, compositor, diretor de
cinema, escritor, pintor, radialista e roteirista.
“Eu sou muito ruim de datas, haja vista que nasci em 1931 e minha carteira garante ter sido em abril de 1929. Por ter minha irmã, Lupe Gigliotti, nascido no dia primeiro de julho de 29, e não sendo minha mãe um fenômeno capaz de gerar uma criança em dois meses e pouco, tudo fica por culpa do cartório de Maracanaú, que me mandou a certidão errada.Aos dezesseis anos percebi que oficialmente tinha dezoito. Com esta idade, aparentava treze anos, e ainda por cima,
Pesava 43 quilos e calçava 41. Quando me apresentei ao exército eu fui a grande sensação do evento, porque pela magreza e tamanho do pé, eu era um L. Fiquei reservista de terceira. Mas, de qualquer modo, foi muito bom durante muito tempo. Eu me vangloriava daqueles dois anos a mais que hoje grito estarem errados. Sou de 31. Você entendeu? Eu nasci somente em mil novecentos e trinta e um. Escutou bem? De 1929 não é a mãe, mas é a mana. Eu sou de 31. Ariano, porque nasci no dia 12 de abril, às cinco da manhã, pois mamãe não queria perder a missa das sete.
Nasci em Maranguape, no Ceará, num sitiozinho pequeno e simpático que ainda existe, e que pertence a um parente, de um certo modo.
Maranguape, cidade de que tanto falo, representa para mim uma grande saudade. Há dias em que sinto o barulho dos pendões da cana chiando nos meus ouvidos e o cheiro da moenda fazendo garapa. Lembro com maior nitidez do riacho que corria estreitinho atrás da nossa casa e não há como esquecer a pequena ponte que nos conduzia do terreiro ao canavial, por onde íamos, por um caminho tortuoso, roçando os braços dos pendões, até a pracinha da cidade. Ah, as noites de quermesse! Éramos quatro filhos em Maranguape: Elano, Lupe, Lilia e eu. Quatro obrigados a tomar, além do indefectível óleo de rícino, o chá de sene com maná, horroroso contra vermes, para que tivéssemos direito ao banho de rio.
Maranguape foi um pequeno paraíso, o Éden da minha infância durante sete gloriosos anos. Ali eu comecei a entrar na vida, a conhecer o mundo e – tão importante quanto – aprendi a ler sozinho.
Nossa vida era boa. Meu pai tinha uma empresa de ônibus e isto nos dava uma condição de “quase-ricos”. Mas, um dia, a garagem dos ônibus pegou fogo. Não havia seguro. Acordamos pobres. Eu não sabia de nada. Nem da abastança anterior e nem da penúria que viria.
Aos oito anos de idade, apenas me lembro do dia em que pegamos o navio para o Rio. Era o Itapajé, da Costeira, depois torpedeado. Um marinheiro na lancha e outro na escada ajudaram minha mãe, minhas irmãs, Zelito e Ritinha – a babá do mano, e a mim. Pronto. Eu estava a bordo do Itapajé.
A cantora Elza Soares e Chico Anysio durante show em São Paulo em 1967 |
Maranguape afastava-se da minha vida na mesma velocidade com que os vômitos chegavam. Os oito dias de viagem eu os passei vomitando no camarote. Nunca perguntei ao meu analista se isto tem alguma coisa a ver com o pavor que tenho do mar. Nem de praia eu gosto. Mas, pensando bem, tudo se encaixa. Não gosto mesmo é das coisas com as quais não posso e nem das que me incomodam. O mar, por exemplo. A praia me aborrece. A areia no pé, a água gelada que respinga, os vendedores de refrescos, o sol mudando de posição a cada minuto, o impacto da onda, tudo me aborrece.
A timidez faz de mim um cara particular. Digo sempre que mais de dois, para mim, é piquenique. O grande passeio da vida é ficar em casa. Perdi muitas noites em boates e bobagens, mas já descobri que a vida é para ser levada dentro de casa, seja a nossa ou a dos amigos, mas em casa. Se na casa houver criança brincando ou brigando é ainda melhor. O ruído de uma criança por perto me faz falta. Minha mesa de trabalho tem uma gaveta grande e funda. Creio que somente um dos meus filhos não dormiu dentro dela enquanto eu escrevia. Eu a chamo de berço e ela tem para mim a importância de uma saudade. E será saudade o que sinto quando lembro da chegada do Itapajé ao Rio? Creio que não. É apenas lembrança.
Era um dia de domingo. O Rio, para mim, menino do Nordeste, era apenas uma cidade diferente. Eu não sabia nada da cidade. Eu estava no Rio, com oito anos, calças curtas, um pé enorme e uma magreza inacreditável. Mas estava porque me haviam trazido, não por meu querer e sim por me determinarem.
Chico Anysio na gravação do programa Ensaio, em 2003. Ao lado, a capa do LP estreia do “Baiano e Os Novos Caetanos”. Fonte: http://blogln.ning.com/ |
Não me lembro se sabia da existência do Corcovado ou do Pão de Açucar. De Copacabana, sim eu sabia. Como sabia dos times do Rio. Sempre gostei de futebol. Fui levado a gostar porque meu pai era presidente do Ceará Sporting e muitas vezes o time se concentrava em Maranguape, no nosso sítio. Várias vezes fui aos treinos do Ceará com meu pai, e aos jogos também. O futebol fazia parte do meu dia-a-dia.
No Ceará eu torcia pelo Ferroviário e, no Rio, fiquei vascaíno. Só pra chatear. Um vascaíno inacreditável, porque além da botafoguisse da família, o primeiro lugar onde eu morei no Rio foi numa pensão na rua das Laranjeiras, 72, pertinho do campo do Fluminense, de onde fui sócio-dependente, sócio-atleta, joguei futebol, nadei, quebrei três vezes cada braço e fiz amigos que mantenho até hoje.
Eu sou do Catete. Catete, Laranjeiras, Flamengo, Glória e Cosme Velho. Esta é minha praia, minha área, minha circunscrição, meu pedaço.
Eu tinha feito o primário no Lycée Francais, atualmente colégio Franco Brasileiro, e minha mãe me matriculou para fazer o ginasial no Atheneu São Luiz. Ia a pé. Era meia quadra distante de casa. Naquele tempo os alunos usavam uniforme e eu lembro que ficava com ódio quando uma turma do Zaccaria nos via, passando de bonde, e gritava em coro:
- Atheneu… São Luiz… Tira meleca… Do nariz!!!
Eu gostava do Atheneu. Lembro-me de muitos professores que foram importantes na minha vida: seu Ely, Dr. Roberto, dona Alice, que ensinava Canto Orfeônico, seu Oswaldo, de Matemática.
Fui reprovado uma vez no Atheneu – o que provocou minha mudança para o Zaccaria – e outra num outro colégio que estudei, o Anglo-Americano. Então, minha mãe me colocou em um colégio interno no Engenho Novo: o Colégio Independência. Éramos 26 alunos internos apenas e foi um período muito desagradável. Como revide, fiquei um mês sem aceitar a folga dominical, passando os trinta dias no colégio. Alguma coisa como, “já que minha família não me quer, também não a quero”. Ficávamos sozinhos: o insuportável do bedel do colégio e eu. Era triste, mas era a forra possível.
Tudo era ruim para os internos: o tratamento, o dormitório e principalmente a comida. Um dia pulamos o muro depois do jantar e levamos, embrulhada num jornal, a comida que nos haviam servido. O cheiro da carne estragada fez com que a esposa do professor Serrão vomitasse na hora em que abrimos o jornal à sua frente. Aquele ano de internato foi péssimo e me ensinou que não há erro de filho que valha punição de um internato. Sou aquela galinha gorda, de asa grande, que coloca os pintinhos embaixo. Quero-os sempre por perto, para mais depressa me preocupar com seus problemas, tentar soluções e, com sinceridade, mais poder me aproveitar de cada barato de suas vidas. Eles são oito e do primeiro para o quinto há 36 anos de diferença. Há, portanto, problemas e alegrias de todas as qualidades e só um louco abriria mão disso. Não os internaria nem na Suíça, mesmo que tivesse capital que me possibilitasse. Eles poderiam ir estudar fora do Brasil, sim, se quisessem. Por determinação ou imposição minha, nunca.
E, no ano seguinte, minha mãe me colocou novamente no Atheneu. Foi bom. De chato, somente o fato de estar dois anos atrás dos colegas de primeiro ginasial. Como só descobrimos as coisas quando não há mais jeito, eu ali aprendi a grande mancada que é repetir de ano. Eu no primeiro científico e meus amigos no terceiro. Mas era o Atheneu. Não era mais a meia quadra de casa porque eu já morava na Marechal Pires Ferreira, no Cosme Velho. Pegava o bonde “3″ – Águas Férreas – e minha mãe me dava passes de bonde, para não botar dinheiro na minha mão. Não tinha mesada, como os outros, apenas recebia os passes da semana. Então, eu vendia os passes para fabricar dinheiro e ia e voltava a pé. Dava pra levar numa boa porque continuava sócio do Fluminense, jogando minhas peladas e até fazendo parte do segundo time do Rio Branco, numa posição em que o titular era o João Carlos, que jogou no Fluminense, no América e no Botafogo.
Como todo menino, eu pensava em ser jogador de futebol. Se no tempo de Fortaleza, quando meu pai tinha a empresa, meu sonho fora ser trocador de ônibus, que havia de mal sonhar em ser jogador de futebol? Embora não pudesse desejar ser um Ademir, ou Danilo, ou Zizinho, eu queria ser um Jair. Jair da Rosa Pinto. Era esse que eu dizia que era quando jogava. Nunca brilhei no futebol, mas nunca fui um dos últimos a ser escolhido no par ou ímpar. Dependendo do time eu era, até, meio indispensável. Tanto que a turma tinha um jogo combinado e eu fui intimado a comparecer. “Jogo contra”, no campo do Fluminense, que naquele tempo alugava o campo para jogos assim. A imposição era de que os times jogassem descalços, para não estragar a grama.
- O jogo é no Fluminense, às três horas – avisaram.
Às duas horas eu estava no poste da esquina, esperando o pessoal. Não me lembro quem foi, mas um colega chegou e me disse que haveria uma mudança. O jogo seria no campo do Aliança, no fim da Rua General Glicério. O campo do Aliança era de terra e não dava para jogar descalço.
- Cadê o seu tênis?
- Eu não trouxe. Disseram-me que o jogo era no Fluminense. Mas não faz mal. Vá indo com o pessoal que eu vou pra casa pegar o tênis e vou direto pra lá.
Ao chegar em casa minha irmã Lupe estava de saída com um amigo dela para fazer um teste na Rádio Guanabara e eu disse:
- Eu vou também. Vamos só passar no campo para avisar ao pessoal que não vou poder jogar.
Fiz dois testes e passei nos dois: rádio-ator e locutor. Por isso eu digo que sou ator porque esqueci o tênis.
http://redeglobo.globo.com.” Entrevista a Ellen Ferreira, em 2011.