Os Evangelhos Gnósticos

Gnose é substantivo do verbo gignósko, que significa conhecer. Para os Gnósticos, Gnose é conhecimento superior, interno, espiritual, iniciático. No grego clássico e no grego popular, koiné, seu significado é semelhante ao da palavra epistéme. Em filosofia, epistéme significa "conhecimento científico" em oposição a "opinião", enquanto gnôsis significa conhecimento em oposição a "ignorância", chamada de ágnoia.

Para os Gnósticos a gnose é um conhecimento que brota do coração de forma misteriosa e intuitiva. É a busca do conhecimento, não o conhecimento intelectual, mas aquele que dá sentido à vida humana, que a torna plena de significado, porque permite o encontro do homem com sua Essência Eterna.

Nos dias atuais, repletos de conflitos religiosos, permeados por atos extremos de intolerância, é fundamental ler uma obra como “Os Evangelhos Gnósticos”, de Elaine Pagels. Aliás, não só uma leitura superficial, mas um exame cuidadoso de cada questão, um profundo mergulho nas entrelinhas deste livro aparentemente simples, porém pontuado por indagações complexas, inerentes à condição humana. Surpreendente a cada página, ele empreende uma viagem às raízes do Cristianismo, revela sua aparência multifacetada, o universo dos primeiros cristãos, suas divergências e os múltiplos caminhos e interpretações assumidos por gnósticos e ortodoxos.

Elaine Pagels, autora já consagrada por críticos literários e estudiosos da Bíblia, analisa nessa obra os documentos encontrados em dezembro de 1945, nas proximidades de Nag Hammadi, por Muhammad ‘Ali, um camponês árabe. 
Por uma dessas ironias do destino, ele ficou profundamente desapontado ao quebrar o jarro descoberto em Jabal al-Tarif, uma montanha com mais de 150 cavernas, e não achar o ouro desejado. O que ele não podia imaginar é que tinha em suas mãos um tesouro de natureza diferente, capaz de provocar intensas polêmicas e disputas em torno de sua posse e eventual divulgação.

Em pleno século XX, quando uma grande parte dos cristãos questiona a ortodoxia e levanta questões semelhantes às que eram debatidas pelos gnósticos no início do Cristianismo, esses documentos são provavelmente revelados no momento ideal, quando a humanidade se encontra mais amadurecida para refletir sobre seu conteúdo, sem condená-los à destruição nas fogueiras da intolerância. Nos primórdios do movimento cristão, os seguidores da doutrina de Jesus Cristo seguiram caminhos diferentes, dependendo essencialmente da visão que tinham dos ensinamentos do Messias. A grande questão suscitada pelo livro de Pagels é justamente porque a versão ortodoxa prevaleceu sobre a gnóstica, consolidando assim a Igreja através da criação de uma “religião de massa”, hierarquizada – enraizada na estrutura clerical – e apoiada sobre os pilares da doutrina e dos textos evangélicos aprovados pelo clero, e da fé nos temas reafirmados no Credo – vida, morte e ressurreição de Cristo.



Na introdução, a autora traça um histórico da descoberta dos documentos de Nag Hammadi, situando o leitor no contexto do Alto Egito, logo após o fim da II Guerra Mundial. Ela revela também os bastidores das disputas pelos papiros, o universo das lutas entre os intelectuais pelo poder do conhecimento e pela posse de preciosos achados arqueológicos. O primeiro capítulo discorre sobre a Ressurreição de Cristo – teve este evento um caráter histórico ou simbólico? Os gnósticos negam a ressurreição literal de Jesus, enquanto os ortodoxos defendem esta ocorrência como algo concreto.


O capítulo dois evolui para a discussão sobre a autoridade eclesiástica. Mesmo entre os gnósticos existiam diferentes correntes e concepções. Os Valentinianos eram os mais conhecidos e aceitos, os mais próximos da Igreja Católica. O que está em questão neste capítulo é a eterna polêmica filosófica em torno da verdade – quem possui o seu monopólio? Há uma única verdade, soberana e absoluta, ou apenas diferentes interpretações da realidade? Aqui esta discussão assume um caráter teológico. Afinal, a quem Cristo delegou seus poderes na Terra? A uma Igreja hierarquizada ou a grupos gnósticos que revivem Sua essência espiritual e detêm o conhecimento da Verdade, rejeitando toda e qualquer autoridade? Os ortodoxos defendem com vigor a idéia de um Deus sem nenhuma dualidade ou ambigüidade, pois uma Divindade no Céu corresponde, como um espelho fiel, a um bispo na Terra. Enquanto isso, os gnósticos, que não se preocupam com estruturas hierárquicas, viajam pelas idéias da duplicidade.

No terceiro capítulo a autora navega pelas correntes do Masculino e do Feminino, e de todas as suas implicações políticas e sociais. Deus Pai para ortodoxos, Deus Pai/Deus Mãe para gnósticos. Seus textos, à margem da Igreja, realçam uma questão que ganha relevo no mundo contemporâneo, a do Feminino, excluído das fileiras do clero, das malhas do Poder. Atualmente este aspecto é muito associado à figura de Maria Madalena, que perdeu espaço para Pedro na liderança do Cristianismo. Esta discussão não se restringe a opostos inconciliáveis – de um lado, o Masculino, de outro o Feminino. A análise dos papiros, principalmente de escritos como ‘O Evangelho de Tomé’, ‘O Apócrifo de João’, ‘O Evangelho de Maria’, entre outros, revela entrelaçamento entre estes dois aspectos, até mesmo um caráter andrógino da Divindade. Bispos como Irineu e Tertuliano, que consideram os gnósticos e todos os que não pensam em termos ortodoxos como hereges, negam acesso às mulheres nos rituais e cerimoniais católicos, e condenam os que aceitam essa participação feminina.

O capítulo sobre a Paixão de Cristo é um dos mais intensos, descrevendo em cores vivas a crucificação de Jesus e os martírios sofridos pelos cristãos. A autora nos remete a este momento doloroso através de imagens fortes e descrições detalhadas das torturas impingidas aos seguidores do Mestre. Os gnósticos condenam o martírio, o sofrimento induzido a mártires que não conhecem verdadeiramente Jesus e, portanto, vivenciam uma dor inútil, que se esvai na ignorância humana. Para os ortodoxos, estes sacrifícios atraem curiosos e admiradores, convertidos por estas visões de heroísmo, aumentando as fileiras católicas.

Enfim, qual a “verdadeira igreja?” No quinto capítulo, enquanto os ortodoxos tentam construir uma igreja universal, acolhendo todos que respeitam as Escrituras e a hierarquia eclesiástica – de qualquer classe, raça ou nível cultural -, os gnósticos, de certa forma, ao enveredarem por um caminho solitário, uma jornada interior de autodescoberta, elitizam o acesso às suas fileiras, aceitando apenas os que já se encontram espiritualmente maduros. 

Este enfoque conduz ao sexto e último capítulo, que mergulha ainda mais fundo na Gnosis, mapeando os caminhos percorridos pelos gnósticos na busca do autoconhecimento e, portanto, do conhecimento de Deus. Qual, portanto, o caminho para o Divino – a Igreja ou o interior de cada um, a Natureza Humana? A autora aproxima a Gnosis da Psicanálise, principalmente de C. G. Jung. Ela revela suas semelhanças, bem como o que as distingue e, em um dado momento, as distancia.

Fontes: Os Evangelhos Gnósticos -Elaine Pagels – Editora Objetiva 

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